Tribunais condenam empresas por atos de discriminação contra trabalhadores

Evangélico, católico, judeu ou umbandista. Seja qual for a orientação religiosa do funcionário, as empresas devem zelar para que não ocorram atos de discriminação no ambiente de trabalho. Caso contrário, podem ser condenadas ao pagamento de danos morais. Processos sobre o tema estão cada vez mais comuns e alguns já foram levados ao Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Há ações individuais e civis públicas movidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Recentemente, um banco foi condenado a pagar R$ 100 mil por danos morais coletivos por atentado à liberdade de crença religiosa, prevista no artigo 5º, inciso VI, da Constituição.

O caso foi analisado pela 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) do Rio de Janeiro. Segundo o processo, uma ex-funcionária foi chamada por outra de “macumbeira vagabunda e sem-vergonha”, além de ter sido ameaçada de agressão física, que só não ocorreu porque foi contida por colegas de trabalho.

A instituição financeira, que já recorreu ao TST, alega que só ocorreu um caso pontual e, por isso, não poderia responder a uma ação civil pública (nº 0000029-08.2013.5.01.00 13). Porém, os desembargadores entenderam que “a lesão capaz de ensejar o dever de indenizar por dano moral coletivo não necessita atingir diretamente um número significativo de pessoas, bastando que possa ofender uma coletividade e atingir os valores essenciais que devem estar assegurados em um ambiente de trabalho saudável”.

Alvo de piadas por parte dos colegas e do gerente, uma umbandista, funcionária de uma empresa de telefonia, também obteve o direito a ser indenizada. O valor, determinado pelo TRT do Rio Grande so Sul, é de R$ 10 mil (processo nº 00210090420185040405).

Segundo o relator do caso, desembargador Clóvis Fernando Schuch Santos, piadas pelo simples fato de sua escolha religiosa não podem ser aceitas dentro da empresa, “uma vez que deveria competir com o zelo por um ambiente de trabalho livre de agressões morais, discriminatórias e desrespeitosas”.

Advogado trabalhista e professor da PUC-SP, Antonio Carlos Matteis de Arruda Júnior, sócio do Velloza Advogados, afirma que tanto a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1949, quanto a Constituição de 1988 asseguram a todos o direito fundamental à liberdade religiosa. “A empresa responde pelos atos de seus funcionários e, por isso, não pode permitir piadas ou comentários ofensivos sobre religião”, diz.

Um outro banco acabou respondendo recentemente pela atitude de uma gerente, que levava um líder religioso para benzer seus subordinados. Um ex-funcionário, incomodado, levou a questão à Justiça e obteve danos morais de R$ 30 mil.

Segundo depoimentos, ela mandava benzer os funcionários e, apesar de não obrigar ninguém a falar com seu guru, as pessoas se sentiam coibidas em função do cargo que ela exercia.

Para o relator do caso no TRT de São Paulo, desembargador Davi Furtado Meirelles, a prova produzida demonstra que o banco cometeu atos ilícitos, por meio de sua gerente, causando prejuízos morais ao funcionário, que certa vez estava doente e teve que se consultar com o líder, que dizia que o caso era psicológico (processo nº 1001879-30.2017.5.02.0040).

De acordo com a decisão “a invocação da crença religiosa não pode servir de pretexto para a prática de atos que atentem contra a liberdade de crença dos demais indivíduos, mormente no ambiente de trabalho”.

Os empregadores devem estar atentos a essas situações, segundo o advogado Túlio Massoni, do Romar, Massoni e Lobo Advogados. Para evitar casos de discriminação, por meio de piadas ou humilhações, acrescenta, devem fazer treinamentos. “As empresas devem efetuar um trabalho de conscientização e respeito a todas as religiões”, diz.

Desde o processo seletivo, o empregador deve tomar cuidado, afirma o advogado. “Ela pode perguntar se existe disponibilidade para cumprir o horário de trabalho, mas não sobre questões religiosas”, diz. Para ele, as crenças devem ser respeitadas e o ideal é que se possa adequar as necessidades técnicas da empresa às do empregado.

Não foi o que ocorreu em um caso envolvendo uma empresa de vigilância. A companhia mudou o contrato de trabalho para exigir o cumprimento de expediente aos sábados por um funcionário, mesmo sabendo que frequentava a Igreja Adventista do Sétimo Dia e deveria se resguardar neste dia.

A empresa acabou condenada. Ao analisar o caso na 12ª Turma do TRT de São Paulo, o relator, desembargador Paulo Kim Barbosa, entendeu que “foi lhe cerceado a liberdade religiosa garantida constitucionalmente” (processo nº 1001056-57.2017.5.02.0072).

Um outro caso chegou a ser levado ao TST. A 1ª Turma entendeu que uma evangélica, candidata a uma vaga de emprego, deveria ser indenizada. Ela alegou ter sido discriminada por ser proibido o uso de saia no ambiente de trabalho (AIRR: 187002720145130008).

Nem todos o pedidos, porém, são aceitos pela Justiça do Trabalho. O TRT de Campinas (RO 43572 SP 043572/2011) considerou não ser um problema orações no local de trabalho, desde que os empregados não sejam obrigados a participar. O processo foi ajuizado por uma evangélica, que se sentiu discriminada pelo fato de as orações partirem de um católico.

Os desembargadores entenderam que, “ainda que o ambiente de empresa não seja apropriado para liturgias e cultos, a inviolabilidade da liberdade de consciência e crença religiosa deve ser respeitada e, data venia, não configura ofensa a direitos da personalidade, nem constrangimento ilegal para os praticantes de outras confissões religiosas”.

Por Adriana Aguiar

Fonte: Valor Econômico

Ver também:

#BiroscaNews 83: Bolsonaro pede (de novo!) que STF anule decretos estaduais de defesa da vida

Falamos sobre a ADI. proposta pelo Presidente da República, agora assinada pelo AGU, que pede a declaração de inconstitucionalidade de Decretos Estaduais (de defesa da vida) tratando de medidas de isolamento social e “toque de recolher”.

Questionamos os fundamentos da petição inicial ponto por ponto para, ao final, questionarmos, afinal, qual o verdadeiro interesse nessa Ação?

Para ler a petição: https://www.conjur.com.br/dl/adi-agu-bolsonaro.pdf

Ver também:

Bolsonaro vai (de novo!) ao STF contra lockdown e toque de recolher em estados e municípios

Sobre o caso anterior ver:

Dica de Leitura: Livros do “III Congresso Nacional de Diversidade Sexual e Gênero”

Entre o final do mês de Outubro e início de Novembro de 2018 aconteceu o III Congresso de Diversidade Sexual e de Gênero, organizado pelos Programas de Pós-Graduação de Direito e de Educação da UFOP e de Direito da UFMG.

Em sua 2ª edição internacional, recebeu palestrantes do Brasil e do exterior e mais de 300 participantes. Além das palestras houve mais de 30 Grupos de Trabalho dos quais resultaram a publicação de dezenas de artigos, que podem ser baixados gratuitamente:

Corporeidades, Saúde e Educação
Volume 1 – Corporeidades, saúde e educação:a(s) dissidência(s) como fator nas (trans)formações de subjetividades (Organização: Rainer Bomfim, Alexandre Bahia, Rafael Aguiar)

Sujeitas Sujeitadas
Volume 2 – Sujeitas sujeitadas: violências e insurgências das subjetividades femininas e LGBT+ (Organização: Flávia Máximo, Luísa Santos, Jéssica de Paula)

Questões trans
Volume 3 – Questões trans: o sagrado crime da divergência (Organização: Gabriela Rubal, Letícia Leite, Marcelo Ramos)

Críticas feministas, LGBTs e queers
Volume 4 – Críticas feministas, LGBTs e queers (Organização: Maíra Fernandes, Gabriella de Morais, Marcelo Ramos)

Trabalho, cuidado e política
Volume 5 – Trabalho, cuidado e política: dimensões do agir de mulheres e pessoas LGBTI+ sobre o mundo (Organização: Flávio Fleury, Pedro Nicoli, Wanessa Rodarte)

Sobre o evento:

O Congresso de Diversidade Sexual e de Gênero, em sua terceira edição, tem uma trajetória de luta na busca da indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão para formação de estudantes e cidadãos sensíveis à perversa realidade de violações de direitos de mulheres e pessoas LGBT e, sobretudo, comprometidos com o dever de instrumentalizar os seus conhecimentos e transpor os espaços da universidade para a transformação social de forma dialógica e interdisciplinar.

O I Congresso de Diversidade Sexual e de Gênero teve como palco a Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG, em 2014. Na ocasião, a primeira edição do evento contou com mais de 600 (seiscentos) participantes de todo o Brasil, inscrevendo-se na agenda nacional e internacional de grandes eventos relacionados à diversidade sexual e de gênero. Congregou-se, ali, em um ambiente extremamente plural, palestrantes, mediadores e participantes de vários estados do país, integrantes da academia, militância, política e artes, com enormes impactos para a discussão nas questões de mulheres e populações LGBT na Universidade e na esfera pública. Coordenado pelo Professor Marcelo Maciel Ramos e organizado pelo Coletivo Gisbertas o congresso contou com diversos parceiros da academia e da militância.

O II Congresso de Diversidade Sexual e de Gênero, por sua vez, foi realizado na Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, entre os dias 12 e 15 de outubro de 2016. Inspirado na campanha “Livres e Iguais” da ONU, o II Congresso de Diversidade Sexual e de Gênero elegeu como tema dessa edição a “Efetivação de Direitos Humanos e Cidadania de mulheres e pessoas LGBT”. O congresso contou com conferências de convidados de vários países e estados brasileiros. Foram mais de 600 participantes e 200 trabalhos apresentados e 05 livros publicados como resultado das conferências e grupos de trabalhos.

Tendo em vista que os eventos anteriores, ambos financiados pela CAPES, se mostraram um lócus democrático bastante produtivo de discussão e geração de conhecimento acerca da temática “diversidade sexual” e “gênero”, a iniciativa dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UFOP e da UFMG, conjuntamente do Diverso UFMG entendeu que Ouro Preto dar espaço para tal realização seria a melhor opção para o cumprimento de seu mister último, qual seja, atribuir visibilidade às problemáticas que essa “subjetividades subversivas” sofrem na contemporaneidade.

O projeto propôs a realização do “III Congresso de Diversidade Sexual e de Gênero: Subjetividades Dissidentes e o Direito” na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), no mês de novembro de 2018. Tratou-se de continuação do caminho de sucesso do I e II Congresso de Diversidade Sexual e de Gênero, realizados na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em setembro de 2014 e outubro de 2016, respectivamente.

A realização da terceira edição do Congresso visou consolidar e ampliar as bases que sustentam a realização do evento, especialmente no momento em que a discussão desses temas no cenário nacional é colocada com centralidade ainda maior. A despeito de avanços em matéria de inclusão jurídica e institucional de pessoas em situação de opressão por sexualidade e gênero, despontam retrocessos significativos. Convive-se com o recrudescimento do debate nos direitos das minorias, conservadorismo religioso e resistência em face das mudanças no espectro familiar e do conceito de gênero.

Tudo isso colocava a dimensão institucional e jurídica no centro do debate, o que justifica a temática escolhida — “Subjetividades dissidentes e o Direito” — e deu ao evento enorme potencial de transformação. Para esta terceira edição, a organização do Congresso ficou a cargo do Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero da UFMG, Núcleo de Direitos Humanos da UFOP e o Grupo de Estudos “Omissão Inconstitucional e o papel do STF: Estudos sobre a ADO no 26” da UFOP, programas de extensão e pesquisa acadêmica que têm como objetivos o combate das discriminações e violências sofridas por mulheres e pessoas LGBT em razão de gênero e de sexualidade, bem como a promoção de reconhecimento social e proteção jurídica desses grupos. Além disso, o evento teve apoio dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UFMG e do Programa de  Mestrado “Novos Sujeitos e Novos Direitos” da UFOP, em uma cooperação institucional que fortalece ambos os programas de pesquisa, efetivando perspectivas jurídicas dissidentes.

Sobre a Constituição X Angela Merkel

Angela Merkel e a nossa revisão constitucional

PEDRO TADEU

por PEDRO TADEU

Angela Merkel bem tentou, mas não conseguiu evitar: o que vimos ontem na visita a Portugal foi mais do que um apoio ao primeiro-ministro e às políticas que ele aplica. Foi um momento visualmente feudal: uma suserana e sua corte a visitar nobres vassalos e a prometer proteção e benefícios em troca de fidelidade e obediência. Acho melhor esquecermo-nos deste dia…

… Ou talvez não. Um dos pontos em que a senhora Merkel voltou a bater foi naquilo que ela diz ser a necessidade de aplicar reformas estruturais de que a economia portuguesa necessitará, especificando a questão da reforma laboral como uma das prioritárias. Já o sabíamos por Passos Coelho, que acrescentou à receita a refundação do Estado, talvez social.

Isto tem vários obstáculos: uma resistência enorme na opinião pública e uma Constituição que limita a capacidade de legislar naquele sentido. A vontade de Merkel e de Passos, consequentemente, obriga à revisão da Constituição, como já sábias cabeças explicaram.

Acontece que os problemas que agora se identificam como tendo uma solução constitucionalmente impossível são levantados há pelo menos 25 anos pelas mesmas pessoas.

Ora, há mais tempo do que esse, as famílias políticas que sustentam essa argumentação (CDS, PSD e PS) têm maiorias de dois terços na Assembleia da República e condições políticas para efetuar essas alterações. Mas até agora entenderam que não deviam ultrapassar certos limites.

A principal função de uma Constituição é garantir força aos mais fracos em tempos de crise, seja ela política, económica ou de outra qualidade qualquer. Se quando é preciso, mais do que nunca, defender os mais fracos, esta classe política os trai e muda a Constituição para ajeitar leis a formas até agora consideradas abusivas, como quem muda as regras de um jogo a meio, que tipo de respeito pelo regime estão à espera que reste? Porque não fizeram essas mudanças quando vivemos tempos de abundância, quando podíamos discutir esses assuntos sem estar debaixo da exigência credora da senhora Merkel ou do que ela, simbolicamente, representa?

Dirão alguns que há coisas no texto constitucional anacrónicas… Fui ver a Constituição dos Estados Unidos da América, o país que estes pró-revisão mais admiram: prevê, por exemplo, que o Estado americano possa passar cartas de corso. Este anacronismo nunca foi emendado. É que o anacronismo não é um problema prioritário. A lealdade institucional para com os cidadãos, essa sim, é a prioridade das regras básicas que definem um Estado decente.

Fonte: Diário de Notícias

Um mundo sem regras – Zygmnun Bauman

 

Zygmunt Bauman (b. 1925), Polish philosopher
Zygmunt Bauman (b. 1925), Polish philosopher (Photo credit: Wikipedia)

O que realmente está em jogo é a “liberdade de escolher o que é certo para você” – para você, e não “para os outros” – ou como compartilhar o planeta e o espaço com esses outros.

A opinião é do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 05-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

“Quem disse que devemos seguir as regras?”. A pergunta aparece com grande destaque no topo do site locationindependent.com. Imediatamente mais abaixo, é sugerida uma resposta: “Você está cheio de seguir as regras? Regras que impõem que você se encha de trabalho e ganhe um punhado de dinheiro que lhe permite ter uma casa e um empréstimo imponente? E trabalhar ainda mais duramente para pagá-lo, até o momento em que você terá amadurecido uma bela aposentadoria […] e finalmente poderá começar a desfrutar a vida? Essa ideia não nos agradava – e se também não agradava a você, vocês está no lugar certo”.

Lendo essas poucas palavras, não pude deixar de recordar uma velha piada que circulava na época do colonialismo europeu: enquanto passeia tranquilo pela savana, um inglês que veste os irrenunciáveis símbolos de um cargo colonialista, com um grande elmo militar, embate-se com um indígena que ronca tranquilamento à sombra de uma árvore. Tomado de indignação, embora mitigada pelo senso de missão de civilidade que o levou a essas terras, o inglês acorda o homem com um chute, gritando: “Por que tu desperdiças o teu tempo, preguiçoso, vagabundo, não-faz-nada?”. “E o que mais eu poderia fazer, senhor?”, rebate o indígena, claramente interdito. “É pleno dia, tu deverias trabalhar!”. “Por quê?”, replica o outro, cada vez mais indignado. “Para ganhar dinheiro!”. E o indígena, no cúmulo da incredulidade: “Por quê?”. “Para poder repousar, relaxar, gozar o ócio!”. “Mas é exatamente o que eu estou fazendo!”, acrescenta o homem, ressentido e enjoado.

Bem, o círculo se fechou: chegamos talvez ao fim de um longo desvio e voltamos ao ponto de partida? Lea Jonathan Woodward, dois professores europeus extremamente cultos e capazes que dirigem o site locationindependent citado antes, talvez estão reconhecendo, explícita e diretamente, sem tantos rodeios, um conceito pré-moderno, inato e intuitivo que os pioneiros, os apóstolos e os executores da modernidade haviam desacreditado, ridicularizado e tentado extirpar quando exigiam, ao invés, que as pessoas trabalhassem duramente por toda a vida e que só em seguida, no fim de intermináveis fadigas, começassem a aproveitar?!

Para os Woodward, assim como para o “indígena” da nossa anedota, a insensatez de uma proposta dessas é tão reluzente a ponto de não merecer nenhuma explicação, nem uma prova discursiva. Para eles, assim como para o “indígena”, é claro como o dia que antepor o trabalho ao repouso – e, portanto, indiretamente, remeter uma satisfação potencialmente instantânea (a regra sacrossanta ao qual o colonialista e os seus contemporâneos se atinham ao pé da letra) – não é uma escolha mais sábia, nem mais útil do que a que coloca o carro na frente dos bois.

Que hoje os Woodward possam afirmar com tal segurança e convicção opiniões que só uma ou duas gerações atrás teriam sido consideradas uma abominável heresia é um índice de uma imponente “revolução cultural”. Um revolução que não transformou apenas a visão que os representantes das classes cultas têm do mundo, mas o próprio mundo em que nasceram e cresceram, que aprenderam a conhecer e experimentaram. Para que pudesse parecer reluzente, a sua filosofia de vida devia se basear na realidade contemporânea e em sólidos fundamentos materiais que nenhuma autoridade constituída parece intencionada a pôr em discussão.

Os fundamentos da velha/nova filosofia de vida parecem ser já indestrutíveis. O quão profunda e irreversivelmente o mundo mudou na sua transição à fase “líquida” da modernidade é demonstrado pela timidez das reações dos governos diante da mais grave catástrofe econômica verificada desde o fim da fase “sólida”, quando ministros e legisladores decidiram, quase por instinto, salvar o mundo das finanças – mas também os privilégios, os bônus na Bolsa e os apertos de mão que selavam acordos milionários e permitiam a sua sobrevivência: aquela poderosa força causal e operativa que esteve na base da desregulação e que foi a principal paladina e expoente da filosofia do “começaremos a nos preocupar quando acontecer”; de pacotes acionários subdivididos em parcelas que permanecem imunes à responsabilidade das consequências; de uma vida que se baseia no dinheiro e no tempo tomados de empréstimo; e de uma modalidade de existência inspirada no “goze rápido e pague depois”. Em outras palavras, aqueles mesmos hábitos, que o poder facilitou, aos quais, em definitivo, o terremoto econômico em questão poderia (e deveria) se remeter. (…)

Contudo, no apelo dos Woodward há algo a mais em jogo, muito mais, do que a diferença entre um posto de trabalho ancorado em um lugar, totalmente encerrado dentro de um único edifício comercial, e um itinerante, dirigido a metas prediletas como a Tailândia, a África do Sul e o Caribe. (…)

O que realmente está em jogo é, como eles mesmos admitem, a “liberdade de escolher o que é certo para você” – para você, e não “para os outros” – ou como compartilhar o planeta e o espaço com esses outros.

Assumindo tal princípio como parâmetro para medir a correção e o valor das escolhas de vida, os Woodward encontram-se na mesma linha de pensamento das pessoas contra as quais eles se rebelam, como os dirigentes e os administradores da Lehman Brothers e todos os seus inumeráveis competidores, além daqueles que, como escreve Alex Berenson no jornal New York Times – recebem “salários de oito dígitos” (acusação que com toda a probabilidade os Woodward rejeitariam indignados).

Todos, unanimemente, aprovam o fato de que “a ordem do egoismo” ganhou força com relação àquela “ordem da solidariedade”, que antigamente tinha o seu viveiro mais fértil e a principal cidadela na prolongada partilha (considerada sem fim) dos locais em escritórios e fábricas. Foram os conselhos de administração e os dirigentes das multinacionais, com o tácito ou manifesto apoio e encorajamento do poder político a cargo, que se ocuparam de desmantelar os fundamentos da solidariedade entre empregados mediante a abolição do poder de contratação coletivo, desmobilizando as associações de defesa dos trabalhadores e obrigando-as a abandonar o campo de batalha, mediante a alteração dos contratos de trabalho, a externalização e a terceirização das funções empresariais e das responsabilidades dos empregados, desregulamentando (tornando “flexíveis”) os horários de trabalho, limitando os contratos de trabalho e, ao mesmo tempo, intensificando a substituição do pessoal e ligando a renovação dos contratos com as performances individuais, controlando-as de perto e continuamente.

Ou seja, resumindo, fazendo todo o possível para atingir a lógica da autodefesa coletiva e favorecer a desenfreada competividade individual para assegurar vantagens de direção.

O passo definitivo para pôr fim de uma vez por todas a qualquer ocasião de solidariedade entre empregados – que para a grande maioria das pessoas representa o único meio para alcançar a “liberdade de escolher o que fazer por você” – requereria, no entanto, a abolição da “sede de trabalho fixa” e do espaço compartilhado dos trabalhadores, no escritório ou na fábrica. E foi esse o passo que Lea Jonathan Woodward deram. Com as suas competências e credenciais, puderam se permitir isso.

Porém, não são muitas as pessoas que se encontram na condição de buscar um remédio para a própria falta de liberdade na Tailândia, na África do Sul ou no Caribe, não necessariamente nessa ordem. Para todos os outros que não estão em uma posição semelhante, o novo conceito/estilo de vida/organização mental dos Woodward confirmaria de uma vez por todas o quanto as suas perdas foram definitivas, a partir do momento em que menos pessoas permaneceriam comprometidas com a defesa coletiva das suas liberdades individuais. A ausência mais conspícua seria a das “classes cultas”, as quais antigamente cabia a tarefa de tirar da miséria os oprimidos e os marginalizados.

PARA LER MAIS:

fonte: IHU-Unisinos

 

Corte europeia discute expressão religiosa no trabalho

Coat of arms of British Airways.

A Corte Europeia de Direitos Humanos começa a julgar, na próxima terça-feira (4/9), se a crença religiosa de funcionários justifica que eles descumpram regras do local onde trabalham. O tribunal também analisa se a religião autoriza até mesmo o descumprimento de leis que confrontam com a fé de cada um. Os juízes europeus vão ouvir o depoimento de quatro trabalhadores que alegam ter sido discriminados no Reino Unido.

Os trabalhadores Nadia Eweida, Shirley Chaplin, Lilian Ladele e Gary McFarlane não têm a mesma profissão e não trabalham no mesmo lugar. Em comum, eles dividem a religião — o catolicismo — e uma batalha judicial para comprovar terem sido vítimas de descriminação religiosa no ambiente de trabalho. Na Justiça britânica, todos os quatro saíram fracassados. Eles tentam agora convencer os juízes europeus, cada um com sua história.

[1] A primeira história é contada por Nadia Eweida. Ela começou a trabalhar na companhia aérea britânica, a British Airways, em 1999. Ficava no balcão de check in da companhia em determinado aeroporto, atendendo os clientes que iam viajar. Tinha que usar o uniforme da empresa: uma camisa de gola alta e gravata. Como regra, não podia exibir nenhum outro acessório, como colares.

O traje de trabalho funcionou bem para Nadia até 2006, quando ela decidiu exibir por cima do uniforme uma corrente de prata com um crucifixo para poder expressar sua fé. A funcionária rejeitou os pedidos da empresa para esconder o crucifixo por baixo da camisa e também recusou a oferta de mudar de setor e deixar de atender clientes. O imbróglio lhe rendeu cinco meses de licença não remunerada, até que, em fevereiro de 2007, a British Airways mudou suas regras e passou autorizar que funcionários exibissem símbolos religiosos, como crucifixo. Nadia, então, voltou ao trabalho.

[2] A enfermeira Shirley Chaplin também era obrigada a trabalhar de uniforme num hospital público da Inglaterra. Ela era funcionária do lugar já há 18 anos quando houve uma mudança na vestimenta: as blusas, que até então eram fechadas até o pescoço, foram trocadas por outras com gola em V, deixando o crucifixo que Shirley carregava no pescoço à mostra. Foi aí que começou o conflito.

A regra nos hospitais públicos proíbe enfermeiras de usarem qualquer joia ou bijuteria por motivos de segurança. O objetivo é evitar que o acessório enganche em algum paciente ou mesmo seja puxado e machuque enfermeira e doente. Shirley recusou retirar o crucifixo do pescoço e acabou transferida de posição para não lidar mais com os pacientes.

Pecado da luxúria
A história de Lilian Ladele e Gary McFarlane, que também será contada na terça-feira (4/9) para a Corte Europeia de Direitos Humanos, é semelhante. Como católicos, os dois condenam o homossexualismo e se recusaram a cumprir regras do trabalho e da própria lei britânica que garantem o direito dos gays.

[3] Lilian era escrivã de um cartório quando entrou em vigor nova legislação britânica autorizando união civil para pessoas do mesmo sexo. Ela se recusou a registrar uniões entre homossexuais e, depois de responder a procedimento administrativo, recebeu o ultimato: ou cumpria a lei e garantia o direito dos gays ou estava demitida. Acabou cedendo.

[4] Já no caso de Gary a ameaça foi cumprida. Ele trabalhava como psicólogo especializado em orientar casais com problemas sexuais, mas se negava a atender pessoas que mantinham relacionamentos gays. Depois de uma investigação administrativa, que concluiu a interferência da religião na função de Gary, ele foi demitido.

Os quatro católicos querem que a corte europeia reconheça que dois artigos da Convenção Europeia de Direitos Humanos foram violados: o 9, que trata da liberdade de religião, e o 14, que proíbe a discriminação. Os juízes europeus vão decidir, primeiro, se cabe a eles analisarem as quatro reclamações. Ainda não há data definida para o julgamento.

[5] No Reino Unido, a Suprema Corte tem em suas mãos caso semelhante aos levados à Justiça europeia. Os donos de uma pousada querem que seja reconhecido o direito deles de impedir que gays dividam a mesma cama dentro do estabelecimento. Os dois são cristãos e alegam que a crença deles só autoriza o sexo entre duas pessoas casadas. Recentemente, eles foram condenados a pagar indenização de 3,6 mil libras (R$ 11 mil) para dois homossexuais que foram impedidos de se hospedar num quarto com uma cama de casal, conforme haviam pedido (abaixo).

Suprema Corte britânica julga religião e direito de gays

Por Aline Pinheiro

A Suprema Corte do Reino Unido decidiu julgar um caso que coloca em lados antagônicos duas garantias fundamentais à democracia: a liberdade de religião e a proibição de discriminação. Os juízes decidiram analisar o apelo dos donos de uma pousada que foram condenados por impedir que dois homens dividissem a mesma cama. O julgamento ainda não tem data prevista para acontecer.

O casal Hazelmary e Peter Bull mantém uma pousada numa cidade litorânea na região da Cornualha, costa oeste da Inglaterra. Os dois são cristãos e procuram, tanto na vida pessoal como profissional, seguir os ensinamentos da Bíblia. Um deles é o de que sexo só pode ser feito dentro do casamento. Caso contrário, é pecado. E, para evitar que seus hóspedes pequem, o casal impede que duas pessoas que não são casadas durmam em quartos com uma cama de casal.

A política cristã na pousada não parecia causar muito problema com os hóspedes. Até que, em setembro de 2008, Martyn Hall e Steven Preddy resolveram se hospedar lá. Os dois são homens, homossexuais e vivem em união civil. Resolveram aproveitar os últimos dias quentes da Inglaterra na Cornualha e pediram para ficar num quarto com uma cama de casal, como fazem os casais. Não conseguiram. Os donos da pousada negaram dizendo que sexo fora do casamento é pecado e, como os dois homens não eram casados, não poderiam dormir juntos.

Martyn e Steven foram à Justiça reclamar terem sido vítimas de discriminação por serem gays. Alegaram que jamais poderiam se adequar às regras da pousada porque não podem se casar. Na Inglaterra, o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é proibido. Os homossexuais podem estabelecer união civil, mas não se casar. A mesma regra vale para a Escócia. O governo escocês, no entanto, já anunciou que vai propor legislação para autorizar que gays se casem.

O juiz de primeira instância determinou que os donos da pousada pagassem indenização de 1,8 mil libras para cada um (cerca de R$ 5,5 mil). A decisão foi mantida pela Corte de Apelo. Os julgadores da corte entenderam que o direito à liberdade religiosa não é absoluto e pode ser restringido, por exemplo, para evitar práticas discriminatórias (clique aqui para ler a decisão em inglês).

Agora, o casal Bull vai defender na Suprema Corte do Reino Unido o direito de manter sua política religiosa na pousada. Eles alegam que, se forem obrigados a aceitar que namorados durmam na mesma cama, terão de fechar o hotel porque não podem ser coniventes com o pecado. Caberá à Suprema Corte decidir se a liberdade de religião legitima a discriminação de homossexuais ou se a prática, por atingir todos os não casados, não é discriminatória.

A Corte Europeia de Direitos Humanos já decidiu nesse sentido, ao entender que proibir que um companheiro gay adote o filho biológico de outro não é discriminação. Na ocasião, os juízes europeus analisaram o Código Civil francês que permite que um parceiro adote o filho biológico do outro apenas se eles forem casados. Caso contrário, não. Como pessoas do mesmo sexo não podem se casar, a adoção dessa forma fica impedida para os homossexuais. A corte europeia considerou que a proibição não é discriminatória se valer para todas as uniões civis diferentes do casamento, entre pessoas de sexo oposto ou do mesmo sexo.

Matérias publicadas no Conjur:

http://www.conjur.com.br/2012-set-02/corte-europeia-julga-empregado-ferir-regras-expressar-religiao

http://www.conjur.com.br/2012-ago-15/suprema-corte-britanica-julgar-liberdade-religiao-legitima-discriminacao

15/01/2013: Resultado do Julgamento:

Balancing Christian and gay rights isn’t easy – give Strasbourg some credit

The conclusion reached by the European court of human rights in Christian discrimination cases is no surprise but the principle is difficult to apply

British Airways employee Nadia Eweida celebrates winning her case outside her barrister's chambers in London, after the European Court of Human Rights ruled that she had suffered discrimination at work because of her faith. She took the airline to a tribunal after she was forced out of her job for wearing a cross in breach of company uniform codes.

British Airways employee Nadia Eweida celebrates winning her case at the European court of human rights. It may be the first defeat for the UK in a case brought under article 9 of the human rights convention Photograph: Yui Mok/PA

Christians and other faith groups do have the right to manifest their religious beliefs in the workplace but it is a right that must be balanced against the rights of others.

That conclusion, reached by the European court of human rights inresponse to claims brought against the British government by four individual Christians, should come as no surprise. But the detailed rulingshows how difficult it was for the seven Strasbourg judges who heard the claims to apply this broad principle to the cases they were deciding.

Take the case of Lilian Ladele, the registrar of births, deaths and marriages who lost her job when she refused to conduct civil partnership ceremonies. By a majority of five votes to two, the Strasbourg judges dismissed her claim that she had suffered discrimination in comparison to a registrar with no religious objection to same-sex unions.

That was because the local authority for which she worked also had a legitimate duty to protect the rights of same-sex couples. The human rights court generally allows member states a wide discretion — what it calls a “margin of appreciation” — when it comes to striking a balance between competing rights. According to the five judges in the majority, the decision to sack her was within that discretion.

But look at what the two minority judges — from Montenegro and Malta — had to say. Recalling that civil partnership ceremonies did not exist in 2002 when Ladele became a registrar in London, the judges found that “a combination of back-stabbing by her colleagues and the blinkered political correctness of the Borough of Islington (which clearly favoured ‘gay rights’ over fundamental human rights) eventually led to her dismissal”.

Minority judgments are written by the judges themselves, unlike the majority ruling which is compiled by officials. The court itself would never have said that gay rights were not human rights.

Nadia Eweida, a check-in operator for British Airways, was the only one of the four applicants to win her case — again by a majority of five votes to two. This time it was the British and the Icelandic judges who would have rejected her claim. They thought the court of appeal in London had been right to dismiss Eweida’s earlier appeal, given all the facts. She had started her job in 1999 and wore a small cross beneath her uniform without any difficulty until 2006.

Eweida was sent home without pay between September 2006, when she refused to remove or conceal her cross, and February 2007, when British Airways changed its policy and allowed her back. The Strasbourg judges awarded her 2000 euros in compensation for her anxiety, frustration and distress. The government was also ordered to pay towards her legal costs.

Ironically, one reason the court found in Eweida’s favour was that British Airways had changed its policy so readily. “The fact that the company was able to amend the uniform code to allow for the visible wearing of religious symbolic jewellery,” it said, “demonstrates that the earlier prohibition was not of crucial importance”.

But the main reason she won her case was that the balance came down in her favour. “On one side of the scales was Ms Eweida’s desire to manifest her religious belief… On the other side of the scales was the employer’s wish to project a certain corporate image.” In Strasbourg’s view, the UK courts had given the latter aim too much weight. BA staff could already wear turbans and hijabs without any negative impact on the airline’s brand or image.

In Eweida’s case, there was “no evidence of any real encroachment on the interests of others”. Contrast that with the case of Shirley Chaplin, a nurse who had worn a cross at work without any difficulty until V-necked tunics were introduced in 2007. Hospital managers feared that a disturbed patient might grab the chain on which it was worn or that the cross might swing forward and come into contact with an open wound.

Tempting though it must have been for the court to dismiss these arguments as fanciful, the court deferred to the domestic authorities. “The reason for asking her to remove the cross, namely the protection of health and safety on a hospital ward, was inherently of a greater magnitude than that which applied in respect of Ms Eweida,” the court said.

Finally, the court dismissed a claim by Gary McFarlane, who refused to counsel same-sex couples after joining an organisation that he knew did not discriminate on grounds of sexual orientation. The balance struck between his rights and the rights of the gay couples came within the UK’s broad margin of appreciation.

At the most basic level, the ruling shows that there is no easy way of balancing the rights of gay people and the rights of Christians: it all depends on the circumstances. In one sense, the balance is shifting towards Christians: as far as I can see, Eweida’s victory is the first defeat for the UK in a case brought under article 9 of the human rights convention, the right to freedom of thought, conscience and religion.

This judgment also strengthens the protection provided by article 9. In the past, the court has held that there was no breach of an employee’s religious freedom — from, say, having to work on the sabbath — if the worker could resign and find another job. That was something of a cop-out. Now, says the court, “the better approach would be to weigh that possibility in the overall balance when considering whether or not the restriction was proportionate”. Judge Bratza, the court’s British former president, went further and said that earlier decisions to the contrary should not be followed.

Adam Wagner, the barrister and blogger, suggested on Twitter that there was “perhaps a whiff of tokenism in Eweida’s win”. It was “the most convincing case, but still should probably have been left to the UK courts”.

Liberty, which supports human rights for all, tweeted that the court had been right to find for Eweida and equally rightis to dismiss the other three claims.

The court’s conclusion is certainly very convenient. It has supported the right to manifest one’s religion — but against the rights of an employer rather than against the rights of individuals. It did so, in one case, after the employer had changed its policy, implicitly accepting that the former restrictions could not be justified. But, in the other case involving the wearing of a cross, it supported an employer which had sought to justify its policy.

In the two remaining cases, the court has not favoured Christians over gay people. But in stressing that member states have a wide discretion in striking a balance between conflicting rights, it allows for the possibility that future disputes will be decided in favour of religious groups.

It even produced a complicated judgment within four months. Whether you agree with the court’s findings or not, you have to give it some credit for sensitivity and shrewdness.

Fonte: The Guardian

Ver também: Conjur,  Conjur, Conjur

 

O sexo e a cor da desigualdade

Dados divulgados pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser/UFRJ) apontam como a desigualdade de renda separa mulheres brancas de negras e como a violência de gênero não está dissociada de aspectos raciais. Marcelo Paixão, coordenador do Laeser, fala sobre os números.

Nos últimos anos, ocorreram reduções nas desigualdades raciais em alguns indicadores do mercado de trabalho, como, por exemplo, o rendimento médio do trabalho. Porém, apesar desta queda, os abismos nos indicadores das pessoas brancas e pretas/pardas permanecem muito elevados. Este panorama é atestado pelo boletim “Tempo em Curso”, elaborado pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser/UFRJ).

Os dados do boletim (clique aqui para acessar) mostram o já conhecido abismo de rendimento que separa os homens brancos dos negros. E explicita que, além da cor da pele, a distância de rendimento expressa também uma dimensão de gênero: mulheres brancas e negras (pretas e pardas) estão separadas por centenas de reais em termos de rendimento (R$1.638 para as primeiras; R$ 906 para as segundas – números registrados em setembro de 2011). A taxa de desemprego, avaliada em cima das seis maiores regiões metropolitanas do país, também indica um cenário pior para as mulheres pretas e pardas, cujo desemprego foi de 9,3% em setembro de 2011, ante 6,2% para as brancas.

O boletim compilou também dados entre 2009 e 2010 que falam sobre a violência contra as mulheres, incluindo sua desagregação de cor ou raça. Esta análise compõe a segunda parte do boletim. As notificações de violência contra mulheres foram feitas segundo os grupos de cor ou raça, a partir dos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN/Ministério da Saúde). Os números apontam 66.350 casos de violência contra mulheres entre 2009 e 2010: 27.676 tendo as brancas como vítimas e 23.698 tendo as negras como agredidas. Houve 14.176 denúncias cuja declaração de cor não foi registrada.

O economista, sociólogo e coordenador geral do Laeser, Marcelo Paixão, afirma em entrevista ao CLAM como funciona a dinâmica de gênero que marca as desigualdades salariais e reflete sobre os números de violência contra mulheres:

CLAM: Os dados mostram que as assimetrias de renda não se limitam à divisão homem e mulher. Dentro da população feminina, a diferença de renda entre trabalhadoras brancas e negras/pardas é de 80,7%. O que esses números dizem sobre a relação entre aspectos raciais e de gênero no mercado de trabalho?

MARCELO PAIXÃO: O rendimento médio do trabalho das pessoas pretas e pardas é sempre inferior comparado ao dos grupos de pessoas de cor ou raça branca e amarela. O desemprego também é uma variável cronicamente desfavorável aos negros.

O fator educacional pode ser mobilizado para explicar estas diferenças, tendo em vista a menor escolaridade média dos negros em relação aos brancos. Mas não podemos explicar isso apenas pela educação. O próprio mercado de trabalho apresenta uma dinâmica que além de remunerar desigualmente pessoas negras e brancas que ocupam postos parecidos, discrimina as pessoas de pele escura quando da oferta de oportunidades ocupacionais melhor recompensadas financeiramente e de maior prestígio social. Tal realidade por sua vez gera um efeito de muito difícil mensuração, mas que se coloca evidente, qual seja: o fato de existirem poucas pessoas negras nos postos de trabalho de melhor posição reforça a baixa escolaridade deste grupo pela via do rebaixamento da auto-estima. Isso forma um círculo vicioso que alimenta a perpetuação das assimetrias sociais e raciais no país.

Quando associamos o debate acima com a da questão de gênero, o que ocorre é o que chamamos de preconceito e discriminação agravados, que une sexo e cor de pele. Os números oficiais que falam do modo pelo qual o mercado de trabalho brasileiro trata as mulheres negras mostram que as relações raciais e de gênero permeiam nosso mercado de trabalho, penalizando aqueles indivíduos que carregam características desvalorizadas socialmente. Seus patamares de remuneração são invariavelmente inferiores aos dos demais grupos, incluindo as mulheres brancas e os homens negros – grupo ao qual em comparação tem até maior escolaridade. Sua taxa de desemprego e informalidade é também invariavelmente maior que a dos demais grupos. Ou seja, a discriminação por cor e gênero torna mais vulnerável a população feminina e negra.

A sociedade brasileira é atravessada por questões de gênero, raça, classe social, entre tantas outras variáveis. E o mercado de trabalho espelha essa dinâmica de desigualdade.

CLAM: O rendimento médio das mulheres pretas e pardas subiu de R$889,83, em setembro de 2010, para R$ 906,69, em setembro deste ano. O rendimento das mulheres brancas ficou praticamente estável (de R$1.640 a R$ 1.638). Podemos falar em um processo contínuo de redução da distância entre essas mulheres? Ou é um dado pontual?

MARCELO PAIXÃO: Ao longo dos últimos anos o mercado de trabalho brasileiro caminhou no sentido da redução das desigualdades sociais e raciais. De um lado o controle da inflação permitiu a preservação do poder de compra dos salários e remuneração do trabalho dos trabalhadores mais pobres. Por outro lado, ocorreu uma política de valorização do salário mínimo, após aumentos reais sucessivos estipulados pelo governo federal. Atualmente salário mínimo brasileiro superou os U$ 200, algo inconcebível há dez anos atrás. Isso repercute no setor formal e no informal, que se referencia no piso salarial. No mesmo rumo, tal movimento contribuiu para a redução das assimetrias.

Porém, é preciso perceber que tal movimento também espelha fenômenos não necessariamente positivos ocorridos nos últimos anos. Desde 1995, com a instituição do plano real, nossa economia ficou mais exposta à competição estrangeira, problema que se agravou não somente pela abertura comercial, mas também pela política de juros elevados e a valorização cambial. Com isso os escalões superiores das ocupações profissionais perceberam ou uma estagnação ou mesmo queda nos seus rendimentos. Este grupo é usualmente formado por pessoas brancas, especialmente do gênero masculino. Por um lado, não haveria motivos para se lamentar este movimento. Mas, por outro, talvez o ideal fosse que as desigualdades sociais e raciais se encurtassem num contexto de aumento geral dos patamares de remuneração da população trabalhadora, inclusive de seus escalões melhor remunerados.

De qualquer maneira, com a reestruturação econômica recente, o leque salarial encolheu, favorecendo a redução das desigualdades raciais, inclusive quando se analisa especificamente a população do sexo feminino desagregada pelos grupos de cor ou raça.

Finalmente, cabe mencionar que se o rendimento dos postos mais altos encolheu e o dos escalões mais humildes subiu, a forma de acesso ao mercado de trabalho por parte dos diferentes grupos de cor ou raça fundamentalmente não mudou. A população branca era 80% dos empregadores nos anos 1990, percentual que se mantém atualmente. Os homens negros e as mulheres negras, respectivamente, costumam responder por cerca de 65% – 70% dos empregos na construção civil e doméstica, isso tanto antes como depois das transformações ocorridas em nosso mercado de trabalho.

Sinteticamente, portanto, pode-se dizer que houve uma mudança nos patamares de rendimento dos grupos de cor ou raça, mas sem mudar essencialmente o modo pelo qual os distintos contingentes chegam ao mercado de trabalho. Assim, segue existindo maior probabilidade de uma pessoa de pele clara ter acesso aos postos mais prestigiados, o contrário ocorrendo com as pessoas de pele escura.

CLAM: Entre 2009 e 2010, foram registradas 66.350 denúncias de violência contra mulheres, das quais 27.676 contra brancas e 23.698 contra pretas e pardas. A que podemos atribuir essa diferença de denúncias?

MARCELO PAIXÃO: Em primeiro lugar, acho importante destacar que o Ministério da Saúde tenha passado a coletar estes dados. Incorporar os dados da violência contra a mulher dentro do SINAN, pois além de dar visibilidade ao tema, é, igualmente, um reconhecimento de que o problema não é uma questão meramente policial, é também um problema social gravíssimo, uma questão de saúde pública.

A superioridade das denúncias de mulheres brancas deve abrigar duas observações preliminares. A primeira é que, pelos dados do SINAN, há 14.176 casos de violência contra a mulher sem o registro da cor da pele da vítima, o que diante do estudo dos impactos deste fenômeno sobre os grupos de cor ou raça corresponde a uma significativa subnotificação. Ou seja, esta lacuna prejudica uma análise mais profunda do fenômeno da violência de gênero sobre os grupos de cor ou raça.

Apesar de os números não serem auto-evidentes, uma segunda hipótese que podemos inferir é que as mulheres brancas, pelo maior nível de formação, melhores condições socioeconômicas e maior auto-estima, se sentiriam mais seguras de seus direitos e denunciariam com mais facilidade as violências sofridas às autoridades da área da saúde. As negras, diante da desvalorização social crônica a que são submetidas, poderiam ter hipoteticamente maiores dificuldade na hora de reclamar e defender seus direitos por não se sentirem seguras para tanto. Os dados não dizem isso, mas dialogam com nossa realidade social tornando a hipótese plausível. Assim, os dados da violência que incidem contra as mulheres negras poderiam estar ainda mais subestimados.

CLAM: Um dado que chama a atenção é a maior incidência de violências sexuais contra as mulheres negras (45% contra 40%). O estupro, por exemplo, registrou o índice de 48,6% para negras contra 38,8 para brancas. A que fatores podemos atribuir essa realidade?

MARCELO PAIXÃO: É difícil responder precisamente a esta pergunta na falta de dados complementares, muito embora não seja nada implausível associar tais diferenças ao padrão brasileiro de relações raciais e à forma pela qual as mulheres negras são usualmente tratadas em nossa sociedade. O fato das mulheres viverem em ambientes socioeconomicamente mais precários e pobres deve influenciar esses números. Mas a cor da pele é em si um fator que aumenta a exposição à violência, especialmente a sexual, situação na qual se soma o desrespeito com a falta de consideração para com a dignidade humana. O que os números do SINAN sugerem é que o racismo atua como um mecanismo que potencializa a vulnerabilidade das mulheres negras para este tipo de situação.

CLAM: Que tipos de ações, leis e políticas públicas podem ser criadas ou melhoradas para combater essas desigualdades no âmbito trabalhista e da violência?

MARCELO PAIXÃO: O enfrentamento das desigualdades no mercado de trabalho envolve desde o investimento na educação, para proporcionar uma formação técnica e profissional, até políticas de ação afirmativa no setor público e privado. A redução das desigualdades raciais precisa ser vista como um objeto a ser perseguido pelo Estado e por toda sociedade. Infelizmente, isso não acontece no mercado de trabalho e demais espaços da vida social, contribuindo para que as posições desvantajosas das pessoas negras na sociedade brasileira se prorroguem indefinidamente.

A questão da violência contra a mulher é mais complexa. Não é apenas uma questão econômica ou de prestígio social. O agente violador dos direitos da mulher pode ser encontrado em todas as classes sociais e grupos de cor ou raça. O racismo à brasileira impulsiona este tipo de prática, tornando as mulheres negras especialmente vulneráveis, especialmente no plano da violência sexual.

Precisamos, primeiramente, melhorar a produção de dados nas áreas de saúde, educação e segurança e analisá-los conjuntamente. Assim, vamos conseguir pensar melhor o fenômeno da violência contra mulher sob a ótica da saúde pública. E isso vai se refletir nas respostas que o poder público irá elaborar. Mas estas respostas terão de englobar diversos níveis, incluindo o plano educacional, da área da saúde e da segurança pública. E também das políticas da igualdade racial, que igualmente deveriam permear este conjunto de áreas desde uma perspectiva transversal.


fonte: O sexo e a cor da desigualdade.